"Late Night With The Devil" e o fetiche do realismo cinematográfico

 [SEM SPOILERS] 

  Late Night with the Devil (2023) é um dos filmes mais primorosos que eu vi esse ano.


  Fazia certo tempo que não assistia à um filme de terror que fosse, verdadeiramente, interessante. E é possível contar histórias interessantes com clichês e narrativas comuns, desde que saibamos contá-las. Não é o que se conta, mas como se conta.

  Late Night nos transporta para os anos 70, somos os telespectadores de um programa de auditório que passava pela madrugada. O clima do filme nos deixa imersos numa nostalgia que sequer vivemos, viramos parte da obra quando nos comprometemos mergulhar na narrativa e deixamos de lado os olhos críticos sobre "técnicas".
  A finalidade de uma boa história é ser uma boa história, hipnotizar quem ouve, fazer com que possamos sair um pouco da realidade material que nos cerca para adentrar em um novo universo com outras possibilidades de exercitar os mais diferentes sentidos.
  


  Tenho observado que, hoje em dia, muitas pessoas têm se fixado na ideia de hiper realismo, como se o filme (ou qualquer obra artística) tivesse a obrigação de convencê-la a acreditar em si. E isso é um tanto problemático, pois deixamos de lado a nossa capacidade criativa e lúdica de brincar de "faz de conta" e negamos nossa capacidade imaginativa para virarmos críticos teimosos, como se disséssemos "obra de arte, me convença de que você é uma arte, me convença de que posso acreditar em você e ser afetado por sua existência, me convença de que você é real". Quando na verdade, nós somos afetados quando nos deixamos afetar. 

  Não é possível tomar água quando estamos com a boca fechada, não é papel da água nos convencer a abrir a boca. A água está ali e a gente escolhe beber ou não. 

  Claro que a técnica ajuda na composição de uma narrativa crível, mas não é dever da técnica convencer. Eu, particularmente, entendo que a técnica é um agente facilitador de transmissão, um facilitador da comunicação e não um agente de "convencimento narrativo" ou base fundamental para a comunicação. Basta pensar que nos comunicamos de diversas formas muito antes de nomear ou classificar técnicas de escrita ou fala. A música existe antes da notação, por exemplo.

  A arte é comunicação, técnica é um dos agentes facilitadores da comunicação.
  A técnica existe porque a arte existe primeiro.

(Há casos que contrariam essa ordem, claro, mas detenhamo-nos a este lado da narrativa para continuar com a reflexão proposta.)

  Pensemos o seguinte: alguém sem grandes habilidades de escrita e narrativa faz uma história, a história é super interessante e imersiva, mas por conta da falta de técnica, não nos deixamos ser afetados por ela e dizemos "essa história não me convenceu, faltou estudo gramatical, algumas palavras não foram bem escritas, esta pessoa deveria ter um conhecimento de português muito mais avançado etc". Isso é uma crítica à técnica, e não à história em si. 
  Com certeza, uma escrita mais estruturada seria um facilitador para nosso imaginário, mas uma obra não deixa de ser arte por falta de "refinamento". Isso tudo é para facilitar e não para convencer.
  Assim como uma narrativa entediante continuaria sendo entediante mesmo com uma escrita impecável, o "poder de convencimento" seria inútil nesse caso, a história continuaria um tédio.

  A arte é arte mesmo quando estamos com os olhos fechados. 


  É importante pensarmos no nosso papel como espectador, pois este também é um personagem. 

  [Eis o seguinte cenário real: um ateu decide assistir ao O Exorcista. 
  Não é papel do filme convencê-lo de alguma crença para que a história fique mais realista. O filme é o que é, ele existe e está lá.
 O espectador ateu escolheu assistir ao filme e com isso, ele se compromete com o papel de aceitar o universo da obra, ele quer ser parte da história, assim, ele deixa de lado sua realidade "material" para se submeter à realidade do filme. Ele brinca de "faz de conta", vira um personagem.
  E este filme pode ser um dos filmes favoritos de sua vida, não pelo fato de ser crível, mas pela forma como ele o afetou e deixou ser afetado.]


  O fetiche do realismo cinematográfico é resultado de uma realidade imediatista, da terceirização do próprio prazer, do julgamento por coisas que "poderiam ser" e não o apreço por "coisas que são".
  Não faz sentido (pra mim) pensar "o filme poderia ser X ou Y". O filme é, e ponto final, tomemos como partido o fato e não a possibilidade. 

  A gente não se satisfaz com o fato concreto, queremos sempre buscar alternativas "melhores". E claro, tudo vai ser muito melhor no campo imaginário das possibilidades, pois este é um lugar em que nós não podemos alcançar, e consequentemente, não podemos lidar. Nos eximamos da responsabilidade de afetar ou sermos afetados, já que o "cenário ideal" não existe. E é bem mais confortável pensar em fazer algo do que fazer algo.
Acho que é interessante pensar que não estamos sendo "servidos" pela arte, mas sim, constantemente afetados. 
  
  A arte é um limiar entre realidade e imaginação. 
  Histórias estão no limiar entre realidade e imaginação.
  Assim como a vida é um grande vão entre realidade e imaginação.


  Link do vídeo que me serviu de inspiração para este pequeno texto de reflexão: O Filme Mais Assustador do Ano?

(Revisado em 28/01/25)
  

  
  

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